Sentados com as pernas para fora, de pé, com as pernas abertas na “carona”: deslizam na rua de palafita duas, três, quatro pessoas amontoadas em uma só bicicleta. Por ali, em Afuá (PA), uma das poucas cidades brasileiras onde carros e motocicletas são proibidos, a noiva vai de bicitáxi para a Igreja, os irmãos maiores levam os menores na garupa, os pais colocam os filhos no “bagageiro”, o brigadista faz resgate do enfermo em uma maca adaptada para a “bicilância” – a ambulância da cidade.
O município construído inteiramente em estruturas elevadas, onde as ruas de palafita estão a 1,20 metro de distância da superfície do rio, tem como principal meio de transporte a bicicleta – depois dos próprios pés, claro. Na cidade sobre as águas, 75% das viagens são feitas de bicicletas, triciclos e quadriciclos. Todos conduzidos por força humana, não motor.
Município paraense na Ilha do Marajó, Afuá é cortada por rios. Tem 38 mil habitantes e nenhuma estrada. A proibição de veículos motorizados é levada a sério pelos moradores, que até já colocaram na cadeia quem tentou andar de moto.
Entre área rural e urbana, as ruas são os rios, e todos os trajetos são feitos de embarcações. Para chegar à cidade, a capital mais próxima é Macapá (AP), a cerca de três horas de barco. Ainda que existam 17 veículos motorizados hoje registrados em Afuá – na zona rural -, o tráfego de qualquer veículo com motor, inclusive elétrico, é dado pela população e pelos gestores como “terminantemente proibido”.
Afuá é a “menina dos olhos” dos cicloativistas brasileiros, que, neste mês, lançam um livro sobre o perfil de ciclistas em municípios com menos de 100 mil habitantes. Em “O Brasil que pedala: a cultura da bicicleta nas cidades pequenas”, pesquisadores visitaram 11 municípios para entender os hábitos dos ciclistas nesses locais.
Na pesquisa de perfil, foram entrevistados 2.208 ciclistas. Mais de 1/3 (34,3%) começou a pedalar porque a bicicleta “é mais rápida e prática”. Para 27,3%, o motivo principal foi a economia deste meio de transporte. Para outros 22%, a principal razão foi a saúde.
Cotidiano
Na rotina da cidade, a limitação de veículos transformou o deslocamento dos serviços essenciais. A ambulância, por exemplo, é em cima de um quadriciclo montado, onde duas bicicletas são “grudadas” e uma maca leva o paciente. São duas “bicilâncias” na cidade. Uma é utilizada pelo hospital em casos mais complexos, no deslocamento dos pacientes da própria unidade de saúde para o porto, de onde sai a ambulancha para a rede hospitalar de Macapá (AP).
A outra fica na Brigada de Incêndio e é usada pelos brigadistas, que realizam entre 15 a 20 resgates em média por mês. A maioria dos atendimentos é para idosos com pressão alta, gestantes, pessoas picadas por animais peçonhentos (principalmente cobra) e vítimas de brigas com arma branca. Na bicilância, além da maca e do “mensageiro” – como é chamada a pessoa que pedala -, no máximo acompanha um equipamento de oxigênio.
Mas nem sempre foi tão confortável assim. Antes, o paciente ia sentado. Foi necessário brigar para que a bicilância tivesse uma maca, regalia que só foi possível quatro anos atrás, graças ao criador do bicitáxi, Raimundo do Socorro Souza Gonçalves, de 51 anos, conhecido por Sarito Souza. Radialista, ele um dia em seu programa se queixou de um cidadão que foi resgatado de bicilância e estava visivelmente desconfortável sentado ao lado do “mensageiro”. “Critiquei no meu programa, o prefeito ouviu e me ligou. Em 30 dias, colocaram maca na bicilância”, conta ele.
A bicilância usada hoje só é possível graças à invenção, 25 anos atrás, do bicitáxi por Sarito. “Começou como uma brincadeira. Eu fiz um triciclo, coloquei um cargueiro atrás da bicicleta e comecei a carregar a família para passear. As pessoas gostaram e me pediam para levá-las para passear também. Fiquei uns 5 anos trabalhando com isso, dando o sustento da minha família com o bicitáxi. Brinco que já fui babá de muitos moradores de Afuá porque os pais, quando queriam ir beber, me pediam para levar os filhos para passear. Eles confiavam em mim, né? Colocava uma música de criança e ficava pedalando na cidade até as crianças dormirem.”
Na época, ele cobrava R$ 1 por passeio. Hoje o valor da corrida de bicitáxi é combinado com o cliente e varia entre R$ 5 e R$ 10, de acordo com a distância. “Em muitos lugares, a mãe diz assim: Meu filho, sai do meio da rua! Em Afuá, a mãe diz: Meu filho, saia de baixo da rua. Por causa do rio, né?”, diz Sarito, rindo.
Há ainda, na cidade, o “quadriciclo do lixo”, o triciclo carreto, e também os homens da manutenção de fiação elétrica, que carregam o material também em bicicletas ou triciclos. O prefeito Mazinho Salomão, por exemplo, vai trabalhar de triciclo.
Já a secretária de Saúde, Valéria Lacerda de Araújo, tem uma bicicleta. Se chove, diz ela, é só abrir a sombrinha e continuar pedalando. “Tem cidade que tem muita oficina de moto e carro. Em Afuá, o que mais se vê é oficina de bicicleta. Aqui o que os ladrões mais gostam não é celular, é bicicleta.”
“Aqui tem a vantagem que não tem acidente de trânsito, então não temos trauma. Às vezes uma criança ou um bêbado cai da ponte, ou uma bicicleta bate na outra. É besteira. O trânsito é bem intenso, mas as pessoas não se batem”, afirma Valéria.
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