Cícero Moraes tinha 54 anos quando o fantasma do HIV lhe tirou o sono, em 2000. Ele era guia de viagens e, numa de suas passagens pelos pontos turísticos do Brasil, um sexo casual sem proteção lhe deixou marcas para o resto da vida.
Próximo da velhice e diante dos tabus que existem por trás da sexualidade de idosos, ele começou a sentir medo do vírus destruir seu corpo e sua saúde mental. As suspeitas começaram quando mal-estares se tornaram frequentes e o fez procurar um médico. “Minha boca começou a ficar cheia de afta, me faltava apetite, defecada líquido e vivia com ânsia de vômito”, afirma.
Foi a partir daí que o diagnóstico da doença veio junto ao sentimento de solidão. Ele avisou a família sobre o problema e, em vez de encontrar amparo, deu de cara com o julgamento e a rejeição dos parentes. “Fui excluído por eles. Só me disseram que se eu tivesse tomado cuidado, eu não estaria assim”, recorda.
Segundo o boletim epidemiológico de 2018, do Ministério da Saúde, 14.848 pessoas com mais de 55 anos (7% do total de infectados) foram diagnosticados, no Brasil, com HIV nos últimos 11 anos. Além disso, a edição 2017 do relatório calcula que a população de idosos soropositivos dobrou desde 2007.
Para a infectologista da Faculdade de Medicina da USP, Vivian Avelino, esse aumento não é necessariamente ruim. Ela explica que muitos contraíram o vírus na fase adulta e tiveram a expectativa de vida aumentada devido ao uso de coquetéis – dose de diversos remédios que, juntos, bloqueiam a multiplicação do microrganismo e evita que ele ganhe resistência.
“Muitas pessoas mais velhas conseguem sucesso nesse tratamento, deixando o HIV indetectável e restabelecendo a imunidade de forma muito eficaz, sem avançar para a Aids”, aponta.
Quando o preconceito fala mais alto
De acordo com Cícero, a falta de conhecimento sobre o HIV e o fato de ser homossexual contribuíram para a discriminação, mas o que mais intensificou o desprezo dos parentes foi o fato dele não ter constituído família ou adquirido bens materiais ao longo da vida.
“Minha família me condenou e me colocou no fundo do poço por eu ter HIV. Mesmo trabalhando, sempre me viram como um sujeito relaxado, sem preocupação com o dia de amanhã. Não consegui ter um carro, uma casa, um filho e uma mulher. Então não me tornei alguém importante [na visão deles]”, desabafa. “Sou uma pessoa desclassificada no conceito dos familiares, e isso pesou sobre o fato de eu ser soropositivo”, completa.
Estar fora do padrão tradicional de família imposto pelos parentes nunca isentou Cícero de tocar sua vida: saiu do ramo do turismo, virou taxista, e hoje, já aposentado aos 73 anos, dá aulas de inglês e é fotógrafo nas horas vagas. Além disso, ele perdeu o medo de morrer pelo HIV quando, ainda no começo da doença, começou a tomar coquetel.
‘Querem tirar o meu direito de sentir prazer’
Mesmo levando uma vida normal, passaram-se 19 anos desde a descoberta do HIV e a indiferença dos parentes continua a mesma. Segundo o idoso, o preconceito em torno de sua homossexualidade, da idade avançada e da doença ainda moldam a visão negativa da família sobre ele, o que lhe trouxe dificuldades.
Cícero mora há três anos de favor com o irmão em Itaim Paulista, no extremo leste de São Paulo, e está prestes a ser despejado. “Tenho até março para me mudar. Meu irmão disse que outras pessoas da família deveriam se preocupar comigo”, diz. “Ele não quer mais me acolher por razões que eu desconheço, mas uma delas é o HIV e o fato de eu ser gay”, completa.
O tabu em torno do tema faz Cícero sentir que o afeto e a sexualidade se tornam invisíveis quando a pessoa envelhece. Atualmente, ele revela não ter uma vida sexual ativa devido à depressão e aos antidepressivos que precisa tomar, mas recrimina o preconceito contra o desejo e a libido dos idosos. “Pessoas assim querem tirar o meu direito de sentir prazer”, critica.
Aos sexualmente ativos e portadores de HIV, Cícero aconselha que sempre usem da sinceridade ao se relacionar com alguém. “Eu dizia para a pessoa a minha situação e eu fui bem entendido e aceito por alguns. Outros preferiram não fazer nada comigo”, aponta.
Tabu do sexo na velhice pode prejudicar a saúde do idoso
Cícero é paciente do Centro de Referência de Treinamento (CRT) de DSTs e Aids, em São Paulo, e faz parte do Instituto Vida Nova, que promove a integração social de soropositivos de todas faixas etárias, sobretudo os que estão em vulnerabilidade social. Na ONG, o idoso passa por atendimento psicológico e participa das atividades de convivência.
De acordo com a médica Vivian Avelino, esse amparo é importante na medida em que existem profissionais de saúde que não suspeitam da infecção de HIV em idosos. Isso porque ignoram a possibilidade dele ter uma vida sexualmente ativa.
“É comum que essa faixa etária tenha diagnóstico atrasado do vírus. Assim, existem os que só descobrem que estão em quadro avançados devido ao HIV quando a imunidade fica muito baixa”, alerta.
Num estudo recente da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), pesquisadores conversaram com 11 idosos, 11 enfermeiros e 12 médicos, e identificaram que há profissionais que enxergam as pessoas mais velhas como assexuadas.
Num dos depoimentos recolhidos, um dos médicos – cujo nome não foi mencionado – diz que não vê necessidade em perguntar sobre sexo. “A gente [comunidade médica] imagina que a sexualidade do idoso é zero. Então não perguntamos nada sobre isso”, afirma.
Além disso, um enfermeiro confessa o seu despreparo. “Não me sinto à vontade para falar com o idoso sobre sexo. Eu me sinto melhor falando disso com uma adolescente, com uma mulher, do que com um homem idoso”, revela.
O medo do HIV se vai, mas os problemas emocionais permanecem
Vivian Avelino analisa que esses erros das equipes hospitalares e a demora na identificação do vírus aumentam o risco do sistema imunológico enfraquecer, facilitando o surgimento de doenças como pneumonia, tuberculose e problemas neurológicos. Tudo isso pode ser evitado pelo exame de sangue, oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Mesmo diante dessa situação, Cícero Moraes se safou de maiores problemas, e o único resquício do HIV em seu corpo foi a perda do paladar e do olfato.
Apesar disso, as sequelas sociais e emocionais do vírus permanecem em sua vida: rejeitado pela família e convivendo diariamente sob o risco de despejo, devido ao preconceito do irmão, ele ainda não sabe ao certo o que será do seu futuro. Por enquanto, ele pretende ir para um asilo ou para um abrigo de pessoas com HIV, cujo nome prefere não dizer.
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